SUBSTÂNCIA TRANSPARENTE

LAURA CASTRO

SUBSTÂNCIA TRANSPARENTE

É uma evidência que a pintura de Catarina Machado encontrou uma linguagem e atingiu uma formulação onde os elementos dominantes se reconhecem, o que equivale à maturação oficinal e conceptual do seu trabalho.

Um projecto perfeitamente definido e explícito instalou-se no seiu quotidiano, cptou-lhe a circunstância e o modo.

Catarina Machado, do fundo de uma fragilidade que gera excesso, transmitiu tudo isto como se dum inquérito à resistência da pintura se tratasse, como se pudéssemos perguntar:

Qual é a cor do movimento?
Qual é a linha que o impulso do corpo descreve?
Como é possível flutuar numa tela sobre um muro?
Qual é a forma da adrenalina?
Quantas cores se podem baralhar sobre uma superfície?
Como é que a vida quotidiana se transforma em arte?
Estas telas aguentam-se de pernas (??) para o ar?
De quantas camadas se faz a vida?
Podemos descrever estas telas?
Como é que se faz leve o excesso?
Quantas sobreposições toleram uma pintura?
Como é que de tudo se elabora pintura?
Como é que se representa o corpo sem o dar a ver?
Qual é a dose de opacidade necessária à transparência?
Em quantos espaços se desenvolve uma pintura?
Como se mete o infinito numa tela?
Quantas imagens existem para cada instante?
Com que manobras se faz pintura?
Quantos sinónimos existem para cada quadro?

Por alguma razão as exposições de Catarina Machado que correspondem a estes quesitos maçadores, não têm apresentado títulos específicos: eles chamam-se, apenas, Catarina Machado. Pela mesma razão se misturam fotografias de situações vividas, com a reprodução das peças expostas. E, pela mesmíssima razão, há objectos ou instrumentos que surgem, significantes, no espaço expositivo e nas págnias do catálogo: um desses objectos é uma prancha de surf. Os trabalhos apresentados, esses absorveram a nomenclatura internacional do novo domínio sobre o mar, que não é territorial nem tem carácter fronteiriço. Esta atitude sustenta uma arte que vive da presença, do momento presente e da experiência pessoal, im projecto assumidamente transparente. Na abstracção e na transparência desta criação apercebemos retrato, observamos figura e até paisagem. Podemos mesmo descobrir um discurso ecológico, uma afirmação das energias renováveis até ao infinito. Podemos finalmente enfrentar uma assertiva declaração de compromisso existencial. À la limite (embora o surf sela mais anglófono do que francófono) até poderíamos desvendar uma posição política. Mas o peso desta interpretação seria desajustado perante este resultado pictórico de intangibilidade e leveza sensorial.

Já há muito que o sistema de equivalências formais se instaurou com ponyos, linhas e planos a soarem musicalidade e a destilarem sentimentos; já há muito (parece muito mais do que realmente é) que esse sistema se desestruturou e foi abandonado. Mas, permanecem estratégias de aproximação a esse mundo percepcionado com os sentidos. Às vezes parece que a pintura já não é deste mundo, sobretudo depois de a imagem se ter revelado profundamente antinatural e consistentemente artificial, virtual, instável no seu trânsito internáutico. Ora, na teimosia desta pintura de Catarina Machado, há ainda imagens que sobrevivem sem representação mas com comprometimento, sem realismo mas com realidade, sem quotidiano tangível mas com identificação plena. De uma integridade absoluta. Transparente.

Laura Castro, 2003

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