Na arte, e na pintura como na música, não é questão de reproduzir ou inventar formas, mas de capturar forças. Por esta razão nenhuma arte é figurativa. A famosa fórmula de Paul Klee -“Não pintar o visível, mas fazer visível” – não tem outro sentido.
Deleuze, Lógica da Sensação
Como capturar as forças que nos moldam? Como captar numa imagem a sensação que elas nos impõem, deformando-nos mais do que nos transformando. Não se trata aqui de representar os seus efeitos, na multiplicidade de elementos que por elas se compõem e decompõem, mas sim de devolver a convulsão que nos arrebata quando nos descobrimos imersos no acaso, incapazes de discernir o que nos é interno e externo, o que em nós comanda e é comandado.
Ergue-se então uma sensação intensa: o momento em que somos mergulhados num corpo a corpo com o universo. As forças inteiras do cosmos em nosso redor. Nós próprios como parte das forças naturais. A linha ténue entre as profundas trevas e a radiosa luz do céu, entre a harmonia e o terror.
Como perpetuar a calma de quem flui em equilíbrio seguro sobre as ondas ou então, de súbito, essa ansia sôfrega de quem emerge como quem nasce e respira pela primeira vez?
Podemos pretender propor aqui apenas uma metáfora sobre a vida inteira, algo abstrato, mediando de forma sublime o nosso acesso a uma ideia estética que tanto nos esmaga quanto nos expande para além do comportável. Pode ser afinal uma experiência carnal, imediata, onde um mar verdadeiro se faz casa, universo, cidade e cosmos. A perpétua variação entre o caos e o traçar de um território frágil.
Pode ser a imagem possível de breves segundos de imersão que nos revelam milénios de expansão da vida por entre as forças que a esmagam como a erguem e com quem aprendeu a fazer do acaso um meio disponível para os seus fins. Pode ser mais ainda a realização de quem se embrenhou no próprio ritmo da matéria e se envolve agora no percorrer de um tempo, onde um instante demora horas a registar, onde a eternidade se traça num movimento.
Quando concretizadas, estas imagens surgem como a afirmação madura de toda uma mestria alcançada na composição estética. Esta não se confunde nem por um segundo com a perícia técnica que não podem deixar de implicar. É um saber profundo sobre os materiais, sim, mas menos sobre as suas propriedades físicas, perenes na sua materialização, e muito mais sobre como podem eles incorporar sensações vivas, intemporais na sua configuração. Uma memória, que não cabe em nenhum corpo individual, em nenhuma alma pessoal.
Um puro devir-fluido onde já não é mais possível reconhecer fronteiras entre a obra e a autora, entre a vontade e o acaso.
Entre a necessária permanência das forças e a sempre fugaz espuma dos dias.
Rui Mascarenhas, Miramar 2015
Composição, composição, eis a única definição da arte. A composição é estética, e o que não é composto não é uma obra de arte. Não confundiremos todavia a composição técnica, trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciência (matemática, física, química, anatomia) e a composição estética, que é o trabalho da sensação.
Compreendendo como conectar-se com elas sem permitir diluir-se em conjunção com elas. Algo mais do campo do instinto mesmo quando feito instituição que sabe dar nomes certos à sua múltiplas expressões.
A composição
O acaso
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