A espessura da nossa pele varia com a idade. Não somente na aparência, mas na convicção. A pintura da Catarina Machado está convencida da sua espessura já própria, apesar de ser nova. A passagem das cores que se enredam em linhas irregulares, não são fruto de uma acção aleatória; correspondem a uma organização antecipada da qual resultará o trabalho final.
A sobreposição compulsiva das linhas insinua a percepção do corpo-próprio quando ela se exerce em movimentos e reacções imediatas – surf. A experiência obsessiva do contorno do corpo que luta em equilíbrio encontra-se transposto na sinuosidade da linguagem cromática estabelecida.
Pintura saturada, mas sem nos cansar, ou se esgotar a si mesma. Revigorada pela intromissão infindável de empastamentos, movimentos e ritmos divergentes, tem de ser olhada durante algum tempo. Não se vê de uma vez só – aliás nada se vê de uma só vez; isso só acontece nos romances – entre pessoas que se encontraram noutras reencarnações – oh metempsicose, se fosses!!!
A pintura da Catarina está a sofrer saudavelmente encarnações de muitas cores, mas é una. Unificada na sua intuição que enfrentou paridade na historiografia actual. As evidências historiográficas que são revisitadas no imaginário conceptualizador da artista são uma espécie de convívio secreto que dinamiza e ironiza, simultaneamente, no acto. A pintura é acto, actuação, acção, desempenho, É quase uma arte no sentido performativo – arte do corpo.
Para se perceber estas frases estão a perseguir-se entre si, mas não se sobrepõem: se eu estivesse a pintar, deliberadamente, podia dizer coisas certas, umas por cima das outras, sem ser necessariamente o Fernando Pessoa! Como só sou eu, cabe-me imaginar a dinâmica da pintura, a afirmação lúdica da respiração que não se quebra, que não cessa, que respira sobre si mesma, sobre os outros quando estão próximos.
Entre-se numa sala que tem um nome bonito em inglês, que corresponde a um conceito interessante na estética actual. Sem mais demoras vejo pintura pelos lados, cores a cavalgar umas por cima das outras, sem se dissolverem. Sabem, cada uma, o seu caminho pessoal. Circulam, saltam ao arco, são flecha e espada, capa de edredão de penas. Por baixo dos sapatos ou das bota, os pés ganham luz. Calca-se pintura, com cuidado, pois a pintura é sólida, mas quer carinho. A fragilidade da luz propagada em redor de si, cria conflitos interiores. A alma está indecisa: não sabe se é transparente, translúcida ou cheia de cores.
À parte a erudição sistematizadora dos nossos encontros com a Arte, tem de haver espaço para saber encontrar-se um caminho único: não necessariamente novo, ou diferente, mas único, pois é pessoal. Então a identidade que se escava na tela, activa as células da superfície; acompanha a integridade morfológica das substâncias e anima de linguagem optimista um centro do mundo dentro de portas, depois de se descerem os degraus desnivelados e de se agarrar a aspereza do sítio.
A Catarina Machado transformou as estruturas invisíveis em densidade de cor, as formas abstractas em potenciais vizinhos da nossa imaginação de rotina. Aguarda-se a prova final: saber mergulhar nesses oceanos impenetráveis de uma razão compacta em que apenas através da intuição e sabedoria do corpo se desoculta a infinitude, a unidade da pessoa.
Porto por acaso, fevereiro de certeza e depois março também.