“Em vez de se medir o conteúdo, o sentido e a verdade das formas intelectuais por um factor externo, temos de procurar nessas mesmas formas a medida e o critério da sua verdade e significação intrínseca; em vez de tomá-las como meras cópias de algo estranho, devemos ver em cada uma delas uma espontânea lei de geração, um estilo original e tendencioso de expressão, que são, efetivamente mais do que a mera imagem de algo, inicialmente dado através das categorias fixas da existência real. A partir deste ponto de vista, o mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como símbolos, e não no sentido de puras imagens que, por meio de sugestões e interpretações alegóricas, se referem a uma realidade, mas antes considerando-as como forças que criam e estabelecem, cada qual de per si, o seu próprio mundo significativo. Neste domínio o espírito mostra-se a si próprio, nessa dialética intimamente determinada, em virtude da qual só há uma realidade, um Ser organizado e definido. Em consequência, as formas simbólicas específicas não são imitações, mas órgãos da realidade, posto que só por meio delas o real se pode converter em objecto de captação intelectual, e assim resultar visível ante os nossos olhos.”
Cassirer “Linguagem, Mito e religião” p. 13
“A Arte quer criar finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que apresenta monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas. Damish analisou precisamente o quadro de Klee, “Igual infinito”: Não é na verdade uma alegoria, mas o gosto de pintar que se apresenta como pintura.”
Deleuze e Guattari “O que é a filosofia?” p. 173
Tempos haverá onde o Bem Soberano se anuncia e por ele se age e tempos onde clamamos pelo Bem e ele parece se esconder inerte. Haverá tempos onde a Justiça, a Verdade e o Belo se conjugam em harmonia segundo Fins Alegres e tempos onde as paixões tristes, a ilusão e o abjecto trituram a vida em morte. Haverá tempos de gozo e tempos de agonia, de iluminação e de trevas. Assim haverá tempos de serenidade e de ansiedade e com eles a mais rica variedade de sensações entre a potência máxima e a máxima impotência.
Haverá tempos onde a imagem mostra o que a palavra conta, tempos onde a palavra alucina enquanto a imagem delira. Afecções e Noções concordam e discordam com os tempos e de tempos a tempos variam ao sabor dos afectos que afectam num ciclo vicioso ou virtuoso. Toda a imagem encontra a memória que lhe fala, toda a palavra encontra a mão que a molda. O dado que nos chega e o que damos à partida cruzam o passado e o futuro num presente que permanece enquanto a sensação durar nos tempos que haverá. A matéria pode encarnar esse encontro de forças, esses cantos e esses gritos, essas luzes e sombras. A matéria pode alimentar e alimentar-se do espírito.
Pode ser a imagem de anjos sem carne e de demónios sem alma. Pode ser ilustrar a Palavra anunciada e glorificar a Ação divina. Pode ser iludir a censura e combater a tirania. Perante o nó dos Tempos, as imagens e as palavras são como anjos e demónios, iluminando ou obscurecendo as certezas de um saber finito, ampliando ou castrando o vigor de um poder limitado. Toda a poesia se ergue desta indeterminação, toda a pintura se compõe desta indiscernibilidade.
Pode a imagem apenas dizer o que descobre encoberto desde os primórdios dos tempos anunciando já um universal Juízo Final. Podem as palavras apenas encenar o que acontece tecendo os infinitos desenlaces que concretizam já um necessário fim da História. O Fim último está então já dado com os dados e as imagens e as palavras são apenas meios que decoram, que ilustram, que engrandecem. A Causa primeira foi então há muito já determinada e terminada e as palavras como as imagens são apenas efeitos que seduzem, que explicam, que glorificam. Copiam-se modelos invisíveis, indizíveis, desvelam-se fugazes aparências de essências eternas. O agente é aí somente embaixador, mediador, ator de um enredo que lhe determina os gestos e as palavras. Tal como um anjo ou um demónio secundário posicionado momentaneamente no coração da cena.
Pode a imagem também, porque não, porque sim, criar os seus anjos e demónios “invisíveis que se fazem assim visíveis”, como se os oferecesse ao mundo inteiro, sem saber bem de onde vêm e para onde irão. Podem as palavras inventar “alegrias e dores que deveras sentem” como se as recebessem da história inteira, sem verem claramente o que recordam e o que projetam. Criam-se então sentidos novos, novos valores em vida ao lado das antigas verdades e morais. Seleciona-se então em nome desta vida, do que é bom, do que traz alegria, mesmo por entre as tristezas, mesmo parecendo mal, mesmo enfrentando a morte. Sente-se e Quer-se o que não fora ainda Pensado sequer. Faz-se então aparecer tudo o que se pode e o que faz poder nas condições reais que se recebe e em que condicionado se atua. Quase o sacrilégio de um anjo caído, quase a emancipação de um demónio reconvertido.
A artista pode então criar, traçar, inventar, abrir o horizonte, aproximar o foco e é toda a existência que pode o que até então não podia ainda, sentir, figurar, compor. Os anjos são os seus como se fossem de toda a gente, os demónios são íntimos como se fossem os da sua espécie, e o que vê e o que faz é a sua vida materializada, espiritualizada, para todos os tempos que hão-de haver. O gesto capta a presença do que lhe falta, o olhar traça o impulso que o ergue aos céus e lhe devolve os mortos como vivos, sempre vivos e livres para partilhar na sua língua com todos os tempos que sempre hão-de vir.
A imagem pode então devolver intactos os seus Anjos Novos perante todas as palavras de todos os Mitos e Histórias.
Catarina pode assim enfim pintar em público:
“Tomai e comungai, estas são as minhas memórias em carne viva, estas são as minhas lágrimas que derramadas se cicatrizam em nós num gesto de asa. Eu vos trago aqui, senhores, os frutos desse trabalho universal e necessário onde juntos encarnamos a eterna aliança com esta Vida efémera. Estas são as minhas imagens das nossas novas canções de gesta. Transmutadas, elas permanecerão para sempre em mim, no meio de vós, inteiras por entre todos os dias limpos e livres, todos as ânsias e tempestades”.
Rui Mascarenhas, Miramar 2012
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